Você já ouviu algum barulho em sua vizinhança? Claro que já ouviu, um estrondo alto, um grito, qualquer coisa do tipo, mas você fez alguma coisa quanto a isso? Claro que não, sabe por que, porque você é normal e é isso que pessoas normais fazem. É mais fácil acreditar que alguém está vendo um filme ou que o barulho vem de algum vizinho bêbado, passando dos limites. É sempre mais fácil imaginar que aquilo não é problema seu. Sempre é assim. Mas eu não sou um cara normal. Se você chegou até aqui, já deve saber disso. Um barulho na vizinhança nunca é apenas um barulho. Um latido no portão vizinho não é só alguém tentando roubar uma bicicleta. Nada é o que parece no meu mundo, e posso te garantir: é bem pior do que você imagina. Não quero dizer que todas as pessoas são egoístas e só se preocupam com o que acontece no conforto de suas casas. Não mesmo. Quando o assunto é egoísmo, eu deveria ganhar uma medalha. Mas a verdade é que este mundo é uma merda justamente por causa disso. E não estou falando apenas de coisas pequenas, como roubos, assaltos e estupros que acontecem na calada da noite, na porta ao lado, enquanto você assiste à sua novela. Estou falando do que se alimenta disso. Dos agentes que, talvez, causem isso desde o começo dos tempos. Esses agentes, que as pessoas comuns negam existir, mesmo quando estão a um palmo de distância. Essas forças imateriais que dançam no sangue das crianças mortas enquanto seus pais imploram por misericórdia, enquanto o assassino afia sua faca. Forças que se alimentam do medo, do ódio e da luxúria dos homens. Pode acreditar, maninho, tem muito mais coisa lá fora de onde vieram essas. Elas estão aí, em cada grito, em cada choro que você finge ignorar na noite. Então, não me julgue por não me preocupar com sua existência agora ou por deixá-lo sangrar até morrer. É apenas a ordem natural das coisas. Amigo, eu faço isso há muito tempo. Mais do que posso me lembrar. E admito: estou cansado pra cacete. Mas essa vida não é o tipo de coisa que você simplesmente abandona porque cansou ou perdeu o interesse. Não mesmo. Só largamos esse trabalho de duas formas: ou perdemos uma briga feia e viramos vegetais inúteis, ou escolhemos não lutar mais e nos tornamos a putinha de algum bicho do lado de lá. Se você esperava algum final aceitável, pode esquecer. Uma vez que abrimos os olhos, eles nunca mais se fecham. Mesmo que os arranquemos à unha. Como alguém entra nessa vida? As razões são muitas, mas raramente pendem para o lado certo da árvore da vida. Alguns herdam isso como uma tradição familiar; outros são seduzidos pelo encanto de cultos espirituais e mágicos. Há os que estão pagando dívidas. Mas a grande maioria entra nessa vida por desejo de poder. Comigo não foi diferente. Não tenho nenhuma ideologia bonita que faça alguém ou algo sentir pena de mim. Não tenho uma desculpa para dar se um dia me encontrar diante de algum ser "todo-poderoso". Na verdade, ninguém tem. Eles só acreditam que são mais espertos que o Deus que criaram e que a barganha é certa. É ignorância, mas é confortável e faz com que consigam dormir à noite. Mas de que adianta dormir, se os pesadelos sempre vêm? Você deve estar se perguntando como eu cheguei aqui e por que estou todo arrebentado, fumando um cigarro na sua frente e bebendo esta vodca barata, não é? Eu poderia simplesmente dizer que um grupo de adoradores de sei-lá-o-quê me sequestrou, me espancou, me matou e cuspiu no meu cadáver. Mas isso seria só o motivo para mais perguntas, não seria? Então vou aproveitar que ainda temos muito tempo – afinal, no ritmo que seu sangue escorre, isso vai demorar pra acabar – e vou te contar como essas coisas começam. Ou, pelo menos, como foi para mim.